Entendo quem chega num país e beija o chão

Janaíne Paiva
10 min readMar 17, 2021

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Hoje definitivamente posso dizer que entendo quem chega em seu país e corre do avião para beijar o chão. Claro que não fugi de nenhuma guerra nem nada, mas só agora um ano depois, consigo falar sobre isso sem ter calafrios.

Claro, também sei que sou mais emotiva que a maioria das pessoas que conheço e posso até ser um pouco dramática, mas nada dessa história foi inventado, tampouco exagerado. É real e foi protagonizada por mim mesma, exatamente um ano atrás, em março de 2020.

Passei três meses na Argentina com intenção de aprender a falar espanhol. Vivi janeiro em Córdoba, (o Rio de Janeiro deles) segunda maior cidade do país, depois segui pra Buenos Aires, uns 700 quilômetros de lá. Morei em dois bairros diferentes e ouvi muitas vezes como a cidade era parecida com São Paulo.

Entendo comentarem a semelhança, pra mim parece que são filhas da mesma mãe com pais de casamentos diferentes, um português e outro espanhol. O pai espanhol é o segundo marido, juntos têm um filho amado e bem cuidado, plano e cheio de gente que se expressa de alguma maneira artística. O filho português, como foi do primeiro casamento, um acidente, um imprevisto, cresceu traumatizado sem pai e agora só pensa em trabalhar. Arte? Só se for pra postar no feed.

Cheguei em Buenos Aires exalando expectativa, já tinha feito contato com amigos de amigos que moravam lá. Já tinha um amigo brasileiro e as garotas que dividia casa, uma pintora cordobesa e uma estudante alemã, além da psicóloga carioca que tinha me alugado o quarto mas não morava mais lá.

Tive tempo de aproveitar minha casa, um belíssimo sobrado com terraço, de escrever, de estudar. Consegui fazer um ou outro rolê de música que queria, outros que não fazia questão e acabei achando o máximo. Sem saber do nosso futuro, passei muito tempo em casa. Também não tinha dinheiro pra ficar turistando pelos lugares caros e lotados que Buenos Aires oferece. Andei muito. Andei lejos e sem destino. Andei mais de hora e realmente respirei bons ares. Até engarrafamento de bicicleta presenciei naquela cidade.

Dei meu melhor pela minha primeira viagem internacional, só fiz o que realmente estava a fim. Viajar sozinha é justamente fazer o que quer sem ter que marcar nada com ninguém. Acordar, comer, andar, comer, ir ao museu, ao parque, dormir, andar, comer; tudo isso na hora que eu queria e pronto.

Exceto ir embora pro Brasil. Isso eu não podia fazer. Meu voo estava marcado para o dia 31 de março. Não dava para me manter no país sem trabalho e não parecia ter muita oferta para uma pessoa que poderia ir embora a qualquer momento. Até que oficialmente a pandemia chegou. De modo que o presidente de la nación começou a agir enquanto eu estava lá mesmo. Quando começou o papo sobre fechar fronteiras, obviamente tentei antecipar minha passagem. Não consegui. No desespero, comprei uma passagem para voltar por terra mesmo. Voltaria 15 de março de ônibus e evitaria ficar presa em outro país dormindo no sofá do meu bro, sem dinheiro e correndo risco de tomar uma multa se saísse de casa. O clima em Buenos Aires era de total tensão, fechou tudo mesmo. Se as pessoas saíam pelas ruas sem uma sacolinha retornável, se ouvia gritos raivosos nas janelas de “quedate en casa!”.

— iludida em Porto Madero

Vivi o que seria meu primeiro último dia em Buenos Aires. Até então não conhecia Porto Madero, fomos sozinhos no ônibus e ficamos praticamente sozinhos lá. Ainda tinha um monte de carioca passeando na feirinha de Pallermo, mas a grande maioria não se via nas ruas mais. Almocei gastando todos meus pesos, afinal estava de partida.

Cheguei horas mais cedo na rodoviária, pra não correr risco de dar merda. Não era fácil carregar três malas, só meu computador dentro da maior delas pesava 5kg. Quando saí de São Paulo, em primeiro de janeiro, não tinha data programada pra voltar. Quando finalmente o ônibus chegou, me pediram alguma “propina”, uma gorjeta pela ajuda pra colocar a mala no bagageiro. Desesperada pra entrar no ônibus, fiz cara de “quê?” e dei as costas. Quando sentei na poltrona nem podia acreditar. Respirei aliviada, fechei os olhos e quando fui afivelar meu cinto, o motorista entrou gritando.

Foi aí que eu tranquei e não soltei mais, até pisar em terra brasilis não dava, estava quatrocentos por cento travada. “Não é minha primeira fronteira, você não vai passar”, ele disse em espanhol. (Na verdade ninguém passou, nem mesmo ele. As seis da manhã a fronteira já estava fechada e esse ônibus precisou voltar pra capital.) Eu desesperada levantando, ele falando bravo e me empurrando pra sair. Explicou mais ou menos que me faltava o papel de entrada e que eu estava atrasando a viagem. Eu realmente tinha lido sobre esse papel de entrada, mas passei na fronteira de táxi, atrasada pra pegar meu voo em Puerto Iguazu e bom, não me atentei que o taxista pegou meu papel e guardou no porta luvas.

Cobraram minha propina jogando minha bagagem no asfalto. Catei tudo, vesti as malas e saí andando. Avisei meu amigo que estava voltando. Peguei um táxi ali mesmo e comecei a chorar. Todo mundo avisa que os taxistas lá não são muito confiáveis. Não mesmo. Chorei tanto que não percebi os 25 pesos em notas de 5 que ele me deu de troco. As notas de cinco não valem nada mais, viraram lixo nas sarjetas. Eu não vi, o desespero atrapalhou.

Aí começou a saga que muita gente também vivia ao redor do mundo. Depender das empresas de viagens pra tentar remarcar um voo. Duas mil pessoas na fila do chat. Quando chegava na vigésima terceira, caía. Voltava pros milhares. E assim por dias.

Minha tensão não cabia na Mitre inteira, imagina no apartamento do Edu. Passei muitas horas sentada olhando para a tela do computador esperando esse número abaixar. Por ter sido comprada com milhas a passagem só podia ser alterada no chat online (te amo, Laura). No dia seguinte amanheci na Imigração. Eu e todo estrangeiro que estava em Buenos Aires. Ali do ladinho de Porto Madero, onde eu tinha ido um dia antes me despedir da cidade. Metade do percurso fiz andando, porque já não tinha mais ônibus pra todo lugar. Muito antes de chegar já estava seguindo o fluxo.

A Bolívia já tinha fechado as fronteiras por seis meses. “Quem está fora não entra e quem está dentro não sai.” Era boliviano, peruano, chileno, uruguaio e BRs enfileirados pra entender quem ia para qual prédio. Eu precisava pagar uma multa de pouco mais de mil pesos por estar ali. Acontece que o taxista que me atravessou, disse que eu ficaria na tríplice fronteira por três dias. Não viajando por três meses pra lá e pra cá. A mulher que me atendeu explicou que meu visto valeria por 10 dias depois de pagar a multa. Como eu não sabia se conseguiria alterar o voo a tempo, me aconselhou pagar a multa no aeroporto mesmo, na imigração de lá, quando estivesse pronta pra embarcar. Assim garantiria que não pagaria mais de uma vez. Imprevisível.

Saí de lá ilegal. Cada policial que passava poderia me parar e eu precisaria pagar mais uma multa por estar ali. Cada ida ao câmbio precisava ser feita às pressas para que não corresse o risco de ser parada, minha maneira de conseguir dinheiro era justamente andando por aí. Precisaria sobreviver com o que me restava e guardar o dinheiro da multa. Era contado. Aeroporto, multa e tchau.

Mas o mundo inteiro queria ir pra casa. E a intenção do presidente nessa época era fechar o aeroporto o mais rápido possível. Os voos sendo cancelados aos montes todo santo dia. Se conseguia mudar pra amanhã, cancelado. Depois de amanhã? Cancelado. Bate papo? Vinte e quatro horas de fila pra não ser atendido. Postei que ia me jogar da janela e me ligaram. Pelo menos o seguro viagem teria mais chance de mandar meu corpo de volta pro Brasil. O consulado brasileiro se comunicava lentamente por email e avisava que todos os voos dos próximos dias seriam cancelados. Enviaram a cláusula que apontava os direitos de ir e vir dos estrangeiros, podia andar na rua, se estivesse a caminho do aeroporto, apresentando bilhete de embarque e os caralho. A essa altura eu já explicava minha ilegalidade em espanhol velocidade alta. “La mujer de inmigración me dijo que…”

Depois de intervir por mim, no dia 24 de março minha amiga conseguiu remarcar meu voo para dois dias depois. Ainda era cedo para respirar tranquilamente. Cancelaram duas vezes, remarcamos. Até que na noite anterior ao voo recebo um email do consulado avisando que aquele seria o último voo pro Brasil. Logo depois outro email, da empresa de aviação, cancelando. Decidi ir assim mesmo, imediatamente.

o tamanho da bagagem emocional não da pra ver

Agradeci meu bro, nos despedimos e me enfiei num táxi. Cidade deserta, meia noite, eu, minhas três malas e o taxista sentindo a minha ansiedade pesando os pneus. Tentou me tranquilizar contando que um dia antes tinha levado passageiros pro aeroporto e estava tudo bem. Eu estava indo pro aeroporto 12h antes do meu voo, só autorizavam a entrada de quem ia voar nas próximas 3. Tentei a sorte.

No caminho muita polícia. E a galera lá se veste igual SWAT, roupa preta, monte de coisa colada, bonezinho preto, carro preto, luz azul, máscara e lanterna na cara. As cancelas dos pedágios quase todas fechadas. Em todas expliquei calmamente (aham) minha situação com a imigração, o motorista me ajudava, implorava pros policiais falando “ela só quer voltar pra casa”. Todas as barreiras escapei por pena. Eles se olhavam como quem diz “será?” e o outro fazia “sei lá, deixa, né” e eu passava mais uma.

Passamos seis.

Eu sinceramente não queria começar a chorar porque não ia conseguir parar. Chorar não ajuda nessas horas, nem botar a mão na cara eu podia, ia chorar pra quê. Enquanto isso, eu enviava meus passos pras pessoas pelo celular e filmava meu próprio Aeropuerto Ezeiza — Madrugada dos Mortos. Nem acreditei que consegui entrar, estava tão esbaforida falando em espanhol e segurando o choro que a policial que estava na porta nem falou nada, só saiu da minha frente.

tem noção

Ufa, ali mesmo eu já queria perder as estribeiras mas ainda era cedo. Tinha gente de todo lugar e todas as idades. Tipo, bebês e idosos mesmo. Morando ali desde sei lá quando. Usando carrinho de bagagem pra esticar roupa, garrafas de vinho vazias jogadas ao lado de sacos de dormir. Gente mancando de lá pra cá, restaurantes fechados, ar condicionado desligado e todos os guichês fechados. Eu nunca tinha visto isso na minha vida. Não tinha ninguém, ninguém. Informação? Nenhuma. Andavam pra lá e pra cá nós e os policiais, que também não sabiam de nada. Na imigração, um senhor entediado me liberou da multa. Não fazia diferença.

nunca tinha visto isso na vida

Meu voo aparecia numa lista de pouquíssimos naquelas telas de programação de chegadas e partidas. Ninguém tinha certeza de nada. Conversei com um cara que ia embarcar, ele me disse “chegou minha hora, boa sorte!” e foi embora. Dez minutos depois ele voltou, — cancelado.

Eu queria chorar, sabe. Eu queria muito, mas isso já era dez horas da manhã, eu tinha cochilado um pouco no chão e acordava toda hora que alguém passava perto de mim. Se tudo desse certo, logo começaria o embarque e ia poder ter mais um pouco de esperança. Uma fila quilométrica tinha se formado no único guichê que abriu, lembra aquele email avisando que o voo tinha sido cancelado? Pois é. Pra quem estava morando no aeroporto há dias, aquele voo era a esperança de chegar no Brasil e seguir caminho depois. Guarulhos nem falava de fechar, que dirá nossas fronteiras.

Todo mundo enfileirado, eu ouvindo Dreams — Fleetwood Mac no foninho repetidamente, dançando, tentando não desabar até que o avião levantasse voo. “Now here you go again, you say you want your freedom…well, who am I to keep you down?” Se cancelavam um voo com embarque liberado, estar na fila da bagagem não significava muita coisa. “But listen carefully to the sound… of your loneliness like a heartbeat drives you mad”. Na telinha de chegadas e partidas quatro voos, dois piscando em vermelho cancelados. “What you had And what you lost… What you had… Ooh, what you lost” .

Bagagem despachada, ninguém acreditava. Ninguém se falava, nem mesmo fazia contato visual. Todo mundo olhando pro nada, pensando em tudo. “Oh, thunder only happens when it’s raining, players only love you when they’re playing, say, women…they will come and they will go — when the rain washes you clean, you’ll know… you know…”. Se uma dessas trezentas pessoas resolvesse surtar não seria nada surpreendente, só torcia para que não fosse eu. Fila de embarque, fila da imigração, medição de temperatura, boa viagem.

Ninguém conversou a viagem toda, assisti Joker na telinha no banco da minha frente e fingi que prestei atenção. Consegui chorar de verdade um mês depois de chegar ao Brasil, tendo um pesadelo atrás do outro, em que sempre me via num aeroporto com voos sendo cancelados.

Quando cheguei, mal sabia o que estava por vir, só queria sair correndo e beijar o chão. Juro que ali me tornei um pouco mais patriota. Contei pra um amigo que agora entendia, ele me disse “na atual situação, melhor mandar beijinho pro ar”

Cheguei em Guarulhos. No mesmo dia o Ezeiza fechou.

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