os que tinham qualidade alta não expressavam minha intenção então perdão

Canarinho

Janaíne Paiva
3 min readJan 14, 2021

Eu já havia decidido não fazer nada aquela noite. Precisava buscar uma encomenda mágica e de bicicleta faria o melhor caminho. Fim de tarde, dia quente, abafado. No caminho uma ladeira enorme para descer, quando fosse a hora de voltar, empurraria a bicicleta por um atalho. Tudo certo. Tudo perfeito. Saí de casa com um sorriso no rosto, convicta de que todas as escolhas que tomei estavam mais que acertadas. Carregava toda essa satisfação num leve sorriso cínico.

Era uma passada lá depois de buscar a encomenda, deixava a bike um minutinho, fumava um, talvez uma risada aqui acolá, coisa rápida. Havia conversado com nossos amigos antes, contei que as coisas seguiam de uma maneira estranha e não sabia mais o que fazer. Não havíamos discutido de verdade, vivíamos aquele jogo do silêncio. “Eu não perguntei, você não tem por quê dizer. Você não vai perguntar, porque já sabe a resposta.” Seguimos nessa dança onde ninguém se olha nos olhos e nada mais importa.

Eu tenho certeza que lá dentro de sua cabeça, tudo até ali estava certo. Tenho certeza que se eu explicasse tim-tim por tim-tim o que senti naquela noite, ou nos últimos anos, tudo seria contestado entre tapas e murros contra minha paz de espírito. Não há motivos para insistir, ninguém sabia por que eu insistia. Nem mesmo eu.

Mas foi a gota d’água. Eu dizia que ia embora, explicava que não estava preparada para a surpresa que armou pra mim. Tentei fugir, não consegui. Fiquei presa por horas. Não entendi de primeira, é mais confuso quando o ataque vem de dentro. É difícil de acreditar no que seus olhos estão vendo, no batimento acelerado no peito, no aviso do corpo tenso gritando “corra!”.

Não me lembro se era quinta ou sexta feira. Um dos meus decidia me trair. Depois do nosso encontro, já tarde da noite, quando consegui escapar, fiz o caminho de volta para casa soluçando. As lágrimas escorriam pelo meu rosto sem parar e no fone de ouvido “Nothing Else Matters” tocava repetidamente.

Eu sei que tudo se desenrolou da melhor e pior maneira possível. Não brigamos, não nos ofendemos. Não existiu nem ao menos um momento gélido onde eu pudesse encará-lo e demonstrar em meu semblante minha dor. Tudo só me bateu enquanto eu empurrava minha bicicletinha avenida acima. Depois do pico de adrenalina todas as peças desse quebra cabeça começavam a se encaixar.

Meu coração na garganta, nenhum ar entrava, nada. Não sentia nada, por instantes paralisada pelo choque. O choque de perceber que aquele cristal estava quebrado. Se me ama, por quê não me respeita?

Por que é tão incontrolável o ímpeto de me dominar e me obrigar a fazer o que não quero? Sou um canarinho pra você? Uma criatura que ama tanto, que de tanto amor ousa se transformar em posse e me enjaula pra você? Eu só sei ser feliz podendo ser, podendo escolher, podendo ir. Só assim decido ficar.

Seja você a companhia agradável para que eu queria estar. Olhe nos meus olhos e assuma suas decisões covardes, assuma seus erros, suas fraquezas. Não somos perfeitos, nenhum de nós está pronto. Eu estou atenta, observo a todos.

Não deixo mais que me puxe pelos pulsos, que me segure longas horas, que me faça te ouvir. Não deixo mais que diminua minhas palavras, meus sentimentos. Não deixo mais que jogue em mim a culpa pela dor de não poder me possuir. Não deixo, não vou deixar.

Que me admire de longe, que sinta a dor de me perder, que me veja através das cortinas da distância gélida de quem tentou me fazer morrer.

Enquanto obedeço cegamente eu morro. Eu preciso poder escolher, decidir seguir o farol que vem de dentro de mim.

Se não tem luz, eu não vou.

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